Fazila Efendic esteve no funeral colectivo no cemitério de Potocari, aldeia junto a Srebrenica, a testemunhar familiares em luto a enterrar um punhado de ossos, como ela fez em tempos. O seu marido, Hamed, e o seu único filho, Fejzo, foram mortos no massacre. Durante anos, sempre que uma nova vala comum era encontrada, Fazila corria para o local na esperança de ver algo que reconheceria como tendo pertencido aos seus familiares.
“Não há palavras para descrever a tristeza que se sente quando se procura (os seus entes queridos) osso a osso”, disse à AP. “Visitei cada nova vala comum; vi o interior de cada uma delas”.
A partir de 11 de Julho de 1995 e em poucos dias as forças sérvias bósnias mataram entre 7 mil e 8 mil homens e rapazes muçulmanos, após a captura da cidade, a qual estava sob protecção de militares holandeses ao serviço das Nações Unidas.
Denominado genocídio, por dois tribunais internacionais, a matança ocorreu no final de uma guerra fratricida de três anos entre croatas, muçulmanos e sérvios da Bósnia, que ceifou cerca de 100 mil vidas, das quais pelo menos um quarto civis.
Os carrascos do massacre tentaram garantir que as vítimas nunca receberiam o tipo de homenagem que Srebrenica realiza todos os anos. Os corpos foram amontoados em valas comuns e mais tarde escavados com bulldozers e espalhados entre outros locais de enterro para esconder as provas do crime.
Desde 1996, cientistas bósnios e da comunidade internacional têm trabalhado a desvendar o que foi descrito como o “maior puzzle forense em qualquer parte do mundo”. Até agora, foram encontrados e identificados os restos mortais de cerca de 6.900 vítimas em mais de 80 valas comuns.
Os restos do marido de Fazila, Hamed, foram encontrados em dois sítios diferentes, em 1998 e 2000, enquanto os do filho, Fejzo, dois ossos, foram encontrados noutra vala, anos mais tarde.
Negação do genocídio
Este ano, devido à pandemia, alguns dos oradores da cerimónia participariam à distância, informou o director do centro memorial de Srebrenica, Emir Suljagic. O antigo jornalista, ministro e professor universitário trocou Sarajevo pela localidade com um projecto muito claro: combater “a cultura da negação do genocídio.
Para os muçulmanos bósnios, o reconhecimento da atrocidade é condição essencial para a reconciliação e uma paz duradoura. Mas para a maioria dos sérvios, tanto na Bósnia como na Sérvia, a palavra genocídio continua a ser inaceitável.
“Algo de que não nos devemos nem podemos orgulhar”, foi como o Presidente da Sérvia Aleksandar Vucic descreveu Srebrenica, mas nunca pronunciou publicamente a palavra “genocídio”. O mais longe foi quando, em Julho de 2017, reconheceu ter sido um “crime horrível”, para de seguida esclarecer que o seu comentário era minoritário: “Entre 80 e 90% dos sérvios não pensam que tenha sido cometido um crime grave.”
“Apesar das provas forenses e das sentenças dos tribunais internacionais, a negação do genocídio de Srebrenica intensificou-se”, diz Emir Suljacic à AFP, o que pode ter como consequência a falta de responsabilização entre as mais altas esferas, o que pode levar a futuras atrocidades.
“Como podemos combater isso? A minha posição é que não podemos concentrar-nos em indivíduos ou grupos que negam o genocídio, mas temos de trabalhar na construção de uma contra cultura que seja inclusiva e envolva todos e se baseie nos factos sobre o que aconteceu aqui entre Maio de 1992 e Junho de 1995”, disse o director do Memorial ao Balkan Insight.
“Não é fácil viver aqui ao lado daqueles que 25 anos depois negam que foi cometido um genocídio”, desabafa Hamdija Fejzic, vice-presidente da Câmara Municipal de Srebrenica. Fejzic diz que a negação do genocídio foi como a “última fase” da atrocidade em si, dizendo à AFP: “Encaramos isso todos os dias.”
O presidente da câmara é o sérvio Mladen Grujicic,foi eleito em 2016, após uma campanha baseada na negação do genocídio. Chegou a afirmar que o número de vítimas não era “válido”.
“Mito fabricado”
Não é só o autarca quem desrespeita a memória dos mortos. O actual presidente do triunvirato que dirige a federação bósnia (em conjunto com um muçulmano e um croata), o nacionalista sérvio Milorad Dodik, afirmou num comício de apoio a Grujicic que não houve genocídio.
No ano passado, este ho-mem declarou, numa conferência que visava “estabelecer a verdade” sobre Srebrenica, que o sucedido em 1995 foi um “mito fabricado. Todo o povo precisa de um mito. Os muçulmanos não o tinham e tentam construir um mito em torno de Srebrenica”, acusou Dodik.
Em 2018, as autoridades sérvias da Bósnia retiraram um relatório de 2004 dos antecessores, que reconhecia o genocídio, e criaram um painel para rever o número de vítimas. O Primeiro-Ministro sérvio bósnio Radovan Viskovic anunciou que um novo relatório deverá ser concluído dentro de um ou dois meses.
“Desta forma, o Governo da República Sérvia quer aproximar a verdade sobre o sofrimento dos sérvios da comunidade internacional e dos historiadores, que, quando um dia escreverem sobre estes acontecimentos, terão provas claras de que a verdade não é apenas o que um dos lados afirma”, disse Viskovic. Também os deputados sérvios no parlamento bósnio têm rejeitado projectos de lei que proibiriam a negação do genocídio.
Herói para muitos sérvios, o chefe militar sérvio bósnio Ratko Mladic aguarda pela decisão do recurso à condenação a prisão perpétua por crimes de guerra, incluindo o genocídio de Srebrenica, por um tribunal da ONU.
Radovan Karadzic, que também foi condenado a prisão perpétua em Haia, continua a ser um herói para muitos sérvios. Segundo a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), em Agosto de 2019 havia 250 casos de crimes de guerra contra 512 acusados na fase pós acusação pendentes em todos os tribunais da Bósnia-Herzegovina. Um campus universitário em Pale, perto de Sarajevo, recebeu o nome de Karadzic, em 2016, e a placa com o seu nome à entrada foi descerrada por Dodik.
Cidade esvaziada
e empobrecida
Vários milhares de sérvios e muçulmanos vivem lado a lado na empobrecida Srebrenica, no leste da Bósnia, na República Sérvia. O censo de 2013 informava que umas 13 mil pessoas viviam no município de Srebrenica, cerca de 7.000 das quais bósnias, mas o número real de habitantes está estimado entre 3.500 e 4.000, dos quais cerca de metade são bósnios. Antes da guerra, os bósnios representavam 75% dos 37 mil habitantes da região.
Além do mais, o campo político parece inclinado. O candidato derrotado nas últimas eleições locais, Camil Durakovic, explica: “Nas últimas eleições, de 4.700 votos para Grujicic, cerca de 2.000 eram provenientes daqueles que vivem na Sérvia, mas que também estão registados como residentes em Srebrenica.
Têm dois bilhetes de identidade e podem votar em ambos os países, enquanto os bósnios de Srebrenica que vivem na Federação (a outra entidade do país) só podem votar lá”.
A OSCE registou, entre Janeiro e Setembro de 2019, 109 incidentes de crimes de ódio nas Bósnia e Herzegovina, entre os quais dois terços envolvendo religião ou etnia.
“O fracasso das autoridades bósnias em registar estatísticas sobre os tipos de crimes de ódio impede uma avaliação abrangente do problema e uma resposta eficaz ao mesmo”, lamenta o relatório de 2020 da Human Rights Watch.
Guterres apela
à reconciliação
O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, apelou para a rejeição do negacionismo e para a reconciliação.
“Há um quarto de século, as Nações Unidas e a comunidade internacional fracassaram perante o povo de Srebrenica. Como disse o antigo Secretário-Geral Kofi Annan, este fracasso irá ‘assombrar para sempre a nossa história’. Confrontar esse passado é um passo vital para a reconstrução da confiança.
A reconciliação deve ser sustentada pela empatia e compreensão mútuas”, declarou.
“Reconciliação significa rejeitar a negação do genocídio e dos crimes de guerra e de qualquer esforço para glorificar os criminosos de guerra condenados. Significa também reconhecer o sofrimento de todas as vítimas e não atribuir culpa coletiva”, continuou.
Para Guterres, todos os cidadãos da Bósnia e Herzegovina merecem o compromisso inabalável dos seus líderes de trabalharem para um ambiente de respeito mútuo, sem discriminação, ódio ou incitação à violência”, concluiu.
O comissário para o Alargamento da União Europeia, Oliver Varhelyi, diz, por seu lado, que o genocídio de Srebrenica é “ainda uma ferida aberta no coração da Europa. Esta parte da história europeia deve ser defendida contra qualquer tentativa de negação e revisionismo.”
* Jornalista do Diário
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