A possibilidade de o SARS-CoV-2, coronavírus responsável pela actual pandemia, originada na China, ter como vector os morcegos, cuja carne é consumida em várias regiões do Planeta, provocou um sério alerta para o tráfico de animais selvagens em todo o Mundo.
O comércio ilegal de animais selvagens é um dos mais lucrativos do Mundo, a terceira actividade clandestina que mais gera dinheiro, atrás apenas do tráfico de drogas e armas. Seja para zoológicos ou coleccionadores, seja para a fabricação de medicamentos ou mortos para consumo ou lhes serem retiradas e vendidas as peles, couros, penas, garras, presas, souvenirs para turistas, etc., este comércio movimenta entre 10 e 20 mil milhões de dólares por ano.
A actividade está associada ao desmatamento e à destruição das florestas tropicais. Para coibir um e frear o outro, especialistas estimam ser necessários entre 22 e 31 mil milhões de dólares por ano, muito abaixo dos 2,6 triliões perdidos no primeiro semestre de 2020 com a Covid-19.
Os animais são retirados da Natureza através da caça ilegal e levados para fora do seu habitat, com destino a coleccionadores nacionais ou a outros países, nomeadamente Estados Unidos, Ásia e Europa.
Animais custam caro
O valor dos animais levados para zoológicos e coleccionadores particulares varia de acordo com o seu tamanho e raridade. Podem custar até 60 mil dólares. No que diz respeito a primatas, espécies como o gorila, o orangotango e o chimpanzé, em risco de extinção, são retirados da África Central e do Sudoeste Asiático e comercializados em países da Ásia, Oriente Médio, mas também na Europa e Estados Unidos, onde são utilizados como atracção turística ou para serem exibidos com símbolo de estatuto social.
Nos Emirados Árabes Unidos, Kowait e Qatar, por exemplo, a procura por crias de chimpanzés e gorilas é grande, mas, para a captura de um animal pequeno, cerca de 10 adultos morrem. Todos os anos, cerca de três mil primatas são retirados do seu habitat.
Durante a captura, transporte ou cativeiro, 90 por cento deles morrem, ou seja, nove em cada 10. Além das armadilhas que podem matá-los durante a captura, muitos animais são dopados para o transporte, durante o qual várias práticas agressivas são cometidas, como escondê-los em pequenas gaiolas improvisadas, tubos de PVC, no caso de pássaros, ou em meias de nylon, quando se trata de cobras.
Desequilíbrio ecológco
Uma abordagem mais economicista tende a focalizar o assunto nas perdas de receitas para o Estado, sendo citados alguns países que obtêm lucros importantes com a caça dita desportiva ou amadora e a venda de animais para zoológicos, laboratórios, indústria de roupas, calçado e adereços. Mas é importante frisar que o comércio legalizado e o tráfico de animais contribuem bastante para o desequilíbrio ecológico, devido a mudanças drásticas na cadeia alimentar. Esta questão é vista, sobretudo, a partir dos locais de retirada desses animais, mas devem ser também tidos em conta os ambientes onde são inseridos.
Embora a presença de animais vivos em zoológicos e centros de estudo seja acompanhada de normas de segurança rigorosas, para evitar o contacto com as espécies locais, são conhecidos vários casos em que a importação resultou, seja por erro humano, seja por desastres naturais, em fugas grandes fugas, com prejuízos enormes para o meio.
O comércio ilegal de animais está, com frequência, ligado a outras acções criminosas. Um exemplo muito citado é o da associação entre cartéis de droga mexicanos e o mercado ilegal de totoaba, espécie de peixe ameaçada de extinção no Golfo da Califórnia ou no Mar de Cortez, entre a Península de Baja e o continente do México, valorizada pelas bexigas natatórias, usadas para fazer sopa. Cada exemplar é vendido no mercado asiático por valores entre 10 e 20 mil dólares.
Mais conhecida ainda é a sopa de barbatanas de tubarão. Estima-se que todos os anos 73 milhões de exemplares sejam mortos pra abastecer o mercado global dessa iguaria, que na China é muito servida em casamentos e banquetes.
Outras espécies comercializadas
No rol de espécies mais procuradas, tanto para alimentação, quanto para a fabricação de vestuário, calçado, adornos ou souvenires estão também as tartarugas, que, além de serem caçadas pela sua carne e carapaça, têm os ovos roubados.
Jacarés, iguanas, jaguares, tatus, macacos, sapos, escorpiões e aranhas, além de diversos frutos do mar, como pepinos do mar, a chamada concha rainha, são populares no comércio de espécies selvagens, tanto para serem usados como animais de estimação, como para a alimentação, seja para fins terapêuticos, religiosos ou outros, seja por representarem iguarias.
Há ainda referir os milhões de borboletas mortas, que representam um comércio anual de cerca de 100 milhões de dólares. O que também chama a atenção é o grande mercado de peixes ornamentais. Nos EUA, são mantidos entre 340 e 500 milhões de exemplares, três vezes mais que o número de cães e gatos combinados.
Por ano, vendem-se 215 milhões de dólares em peixes tropicais. O país importa 125 milhões de peixes ornamentais, avaliados entre 25 e 30 milhões de dólares.
O tráfico de animais selvagens está também associado à proliferação de doenças, tanto para a fauna das regiões importadoras, como para o próprio homem. Esse problema é muito referido quando se fala no desmatamento das selvas tropicais virgens.
Os cientistas alertam que quanto mais se desmata, maior é o contacto do ser humano com agentes patológicos, como vírus e bactérias desconhecidos. O novo coronavírus é o maior exemplo, mas existem outros. Aspecto a ter em conta é que os hospitais locais e os seus profissionais nem sempre estão preparados para atender a casos de doenças provocados por animais desconhecidos.
Redes sociais como aliados
Antes feito com base em contactos mais físicos ou com o uso de meios de comunicação mais simples, o tráfico de animais selvagens tem hoje como aliado importante a Internet e as Redes Sociais. Se os caçadores podem adquirir novos conhecimentos sobre as formas de capturar as presas, também circulam informações sobre como transportá-las e mantê-las em cativeiro, assim como comercializar os seus produtos.
O que se nota é que, embora alguns traficantes recorram a técnicas e meios de comunicação mais difíceis de detactar, como a deep web, muito usada no comércio ilegal de armas e drogas, a grande maioria apresenta características comuns à sociedade da informação.
A Internet é hoje um dos meios mais utilizados para as vendas. Muitos traficantes anunciam os seus produtos nas redes sociais e contam com a corrupção e a legislação muito branda na maioria dos países para levar a cabo a sua actividade fraudulenta.
A caça ilegal e o comércio de animais selvagens são considerados contravenções penais e não crimes, pelo que as penas aplicadas são passíveis de ser convertidas em multa. Nalguns países, a caça de animais selvagens considerados “prejudiciais” é permitida, desde que obedeça a recomendações dos órgãos achados competentes. Os fiscais vêem-se assim responsáveis por atender a uma série de itens, que vão desde as espécies cuja caça é permitida, as épocas em que pode acontecer para este ou outro animal, o tipo de armas a serem utilizadas.
Clubes são criados para a caça amadora e são construídos criadouros para fins económicos e industriais. Em muitos países, a caça está incorporada nos pacotes de turismo, servindo como atracção para pessoas habituadas a ver a fauna selvagem apenas na televisão.
ALERTA EM ANGOLA
Animais vivos e mortos chegam a ser vendidos na via pública
Em Angola, a legislação relativa à floresta e fauna selvagem permite a caça de subsistência, sem obrigatoriedade de licença, e abrange apenas animais de pequeno porte.
De acordo com o legislado, que envolve a utilização dos “recursos faunísticos nos terrenos rurais” para fins alimentares, de vestuário, farmacêuticos, medicinais e culturais, “as pessoas singulares e as famílias que integram as comunidades rurais têm, na localidade da sua residência, o direito de exercer a caça de subsistência”, “sem prejuízo das disposições relativas ao ordenamento florestal e faunístico e ao regime de áreas de conservação”. O exercício do direito de caça de subsistência “é gratuito e não está sujeito a qualquer autorização prévia”.
As restantes modalidades de caça, isto é, a “utilitária”, a “recreativa ou desportiva” e a “científica”, obrigam a uma licença para o exercício da actividade e outra de uso e porte de arma de caça.
A caça utilitária também envolve a captura ou abate de animais selvagens para fins de regulação da população, bem como para a produção e venda de carne. A “recreativa ou desportiva”, praticada por caçadores residentes ou não residentes, tem “fins de turismo cinegético” e a “científica” é exercida por instituições de investigação, nacionais ou estrangeiras, públicas e particulares, ou por pessoas singulares, apenas “para fins de estudos científicos”.
Angola proíbe a caça nas áreas de conservação, como reservas naturais ou parques nacionais, nos ecossistemas e habitats protegidos de espécies migratórias, nos bebedouros e locais de dormida de aves, assim como de fémeas, em idade reprodutiva e/ou acompanhadas de crias e a mutilação de animais selvagens, “sob qualquer pretexto” ou o “abandono de animais feridos no acto da caça”, o que representa crime de agressão ao ambiente.
O exercício da caça no País, que só pode ser feita em terrenos rurais do domínio do Estado ou das autarquias, comunitários, rurais sob concessão de direitos fundiários, coutadas públicas e particulares ou em fazendas pecuniárias, e é proibida a utilização de explosivos, armadilhas, redes, ratoeiras e laços. Esses artefactos são permitidos apenas na caça de subsistência, “ao abrigo dos usos e costumes dos povos das respectivas comunidades”.
Espécies em perigo
O comércio de animais vivos alia-se à caça furtiva nas acções nefastas que contribuem para o desaparecimento das espécies. Devido, sobretudo, às duas actividades ilícitas, que incidem sobre os mamíferos, aves, répteis e peixes, Angola tem 29 espécies ameaçadas de extinção.
Activistas e professores de Biologia e Ciências da Natureza alertam que a densidade e diversidade de animais selvagens no País estão em declínio. Desde o fim do conflito armado, em 2002, a caça e o comércio ilegal de animais selvagens passaram de meios de subsistência a actividade comercial de pequena, média e até de grande escala.
Cabras, javalis, macacos, jacarés, aves, manatins, leões, chitas, búfalos, olongos, zebras, palancas, coelhos, pangolins são abatidos pelos caçadores ou capturados vivos para venda à beira das estradas, em diferentes mercados informais e mesmo na via na via pública.
Na rota do tráfico
Num artigo publicado no site da EcoAngola, organização que promove a sustentabilidade com foco na desflorestação, plásticos, lixo e reciclagem em Angola, três colaboradores, nomeadamente, uma estudante da Faculdade de Biologia da UAN, um estudante de Engenharia de Recursos Naturais e Ambiente na UNIA e uma professora de Biologia da UAN, referem, citando fonte do Departamento do Instituto de Desenvolvimento Florestal (IDF), que, só em 2017, a caça furtiva em Angola movimentou 220 milhões de euros (259,89 milhões de dólares ao câmbio actual).
Os autores do texto reforçam ser o País um dos três do Mundo que “preocupam a comunidade internacional, por estar a servir de trânsito intercontinental em grande escala, de comércio de marfim”.
Os três colaboradores da EcoAngola referem dados da represente angolana da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Selvagens Ameaçadas de Extinção (CITES), publicados no “Novo Jornal”, em 2015.
Além dos animais, a Natureza é afectada pela recolha intensiva de elementos da flora, que, constituindo o principal alimento de determinada espécie, levam ao seu desaparecimento. Ainda que o comércio de animais seja tomado ao nível de cães e gatos, cuja criação é bem vista e até considerada como “empreendedorismo”, a presença de animais selvagens entre os domésticos é sempre negligenciada, sem se ter em conta que a prática de cativeiro acaba por provocar doenças como zoonoses. Certos animais são vectores de agentes patogénicos, portadores de bactérias e vírus, que podem ser transmitidos ao homem.
Um papagaio que assobie e “fale”, um pássaro a piar, um macaco a dar cambalhotas ou um cágado a comer alface, fazem sempre as delícias das visitas nas casas e dos clientes em bares e restaurantes. Mas podem ser perigosos.
Regionalismo e tribalismo
Nalgumas províncias de Angola, tal como acontece com determinadas espécies vegetais, a venda e consumo de carne de animais selvagens chega a ser tido como um problema de identificação e não raras vezes servem para encobrir atitudes e comportamentos regionalistas e tribalistas.
Conversas desabonatórias e piadas foram ouvidas por altura da epidemia de Marburg, em 2004/2005, no Uíje, província onde se consome carne de várias espécies de animais selvagens. Facto curioso é que essas “iguarias” são servidas em restaurantes conhecidos, mencionados nos cardápios do dia.
Mais curioso ainda é a caça e o consumo de animais selvagens de espécies em risco de extinção serem testemunhados por fiscais do Estado, agentes da Polícia e jornalistas, sendo os episódios reportados como actos de bravura pelos protagonistas.
Tudo acontece à revelia ou nas barbas das autoridades e com o conhecimento de que se trata de crimes e contravenções. A legislação angolana, que tem muito a ver com a Convenção de CITES de 1973, que entrou em vigor a 1 de Junho 1975 e foi ractificada por Angola em 2013.
Além da Lei de Bases de Florestas e Fauna Selvagem (Lei nº 6/17, de 24 de Janeiro), foram aprovados e publicados no Diário da República o Decreto Executivo n.º 137/13, de 6 de Maio, que proíbe a importação de animais selvagens vivos para fins comerciais sem a prévia autorização, e a Lei 21/14, de 22 de Outubro, que aprova o código geral tributário, onde no seu artigo 186, sobre contrabando qualificado, a qual, na alínea g), refere a mercadoria contrabandeada tipificada no anexo I à CITES.
Foram ainda aprovados o Decreto Executivo nº 469/15, de 13 de Julho, que proíbe o abate em território nacional das espécies protegidas da fauna e flora selvagens, o Decreto Executivo nº 133/15, de 21 de Abril, que cria a Unidade Nacional de Fiscalização do crime em vida selvagem, o Decreto Executivo nº 433/16 de 26 de Outubro, referente à publicação do Certificado CITES, e o Decreto executivo nº 252/18, de 13 de Julho, alusivo à Lista Vermelha das Espécies de Angola.
Relatos da Polícia, dos fiscais e da população dão conta do uso de armamento pesado na caça furtiva. Além de armas artesanais, caçadeiras, metralhadoras do tipo AKM e PKM e carabinas de precisão, como SVD, são usadas e têm sido apreendidas.
Sinais positivos são dados por algumas organizações de conservação da Natureza e defesa do ambiente. Vários projectos são desenvolvidos pelas mesmas e por instituições de ensino, como é o caso do Kitabanga, de Conservação de Tartarugas Marinhas, afecto ao Departamento de Biologia da Faculdade de Ciências da Universidade Agostinho Neto, a ser implementado, desde 2003, com a anuência do Ministério do Ambiente.